30.4.25

viver gay e não se deixar morrer assim tão fácil

Na semana passada um amigo do meu ex faleceu. Nós ainda namorávamos quando ele me contou sobre a internação após passar por vários médicos que disseram: "deve ser dengue". Foi bem na época do carnaval quando descobriram que os sintomas dele eram neurológicos. Era uma infecção de origem desconhecida que estava afetando o cérebro. No hospital também descobriram que ele estava com hiv em estágio avançado, aids.

Todos ficamos muito perplexos com a notícia. Pensamos em como foi chegar a este ponto, que deve ter havido negligência dele próprio, que ele talvez estivesse guardando essa desconfiança por muitos anos e que não queria, não conseguia encarar. Talvez estivesse fugindo de médicos, de exames de rotina. É frequente que peçam contagem de plaquetas nestes exames. Certamente alguma coisa teria denunciado, dado algum indício. Meu então namorado me contou que tinha notado uma grande perda de peso dele no último ano. Talvez ele estivesse mesmo sofrendo em silêncio. 

Parece que ser gay, vivenciar a homossexualidade, fazer sexo gay, anda lado a lado com o adoecimento. Eu sei que não é assim, mas isso é algo que nos persegue. As histórias difíceis do passado, dos anos 80 e 90, e os riscos que se corre no presente, são coisas que nos atravessam, que produzem efeito em nós. O primeiro teste de ist que fiz após transar sem camisinha foi um nervosismo e uma angústia imensos, e ainda assim me vi me colocando em situações de risco novamente. "Com tesão não se pensa muito, na hora só vai..." mas não é esse o único caminho possível, dá pra fazer de outro modo.

Atualmente existe a prep, este medicamento que, se tomado diariamente, protege da infecção pelo hiv. Ele está sendo usando por muitos homens gays e já reduziu bastante as novas infecções, o que é maravilhoso. Porém, ao se sentirem protegidos com o remédio, muitos rapazes abrem mão da camisinha e é aí que entram as outras ists, principalmente as bacterianas. Este comportamento é de risco. Mas quando você diz isso a um gay que se comporta desta forma, rapidamente ele entra na defensiva, te acusa de homofobia, de fazer estigmatização.

Meu último relacionamento era aberto e em um ano de namoro ele me passou três ists. A primeira foi gonorreia, como ainda estávamos nos conhecendo, meio que passou batido. Fiz o tratamento, e ele também mesmo não tendo sintomas, porque é o recomendado. Eu disse a ele que ele era a única pessoa que eu tinha ficado em mais de um mês, dando a entender que ele tinha me transmitido, mas por não termos ainda compromisso fixo, não entramos muito nesta discussão. A segunda foi gonorreia novamente, com uns seis meses de namoro. Dessa vez um alerta começou a acender em mim. Novamente eu estava há mais de um mês transando só com ele. Tivemos uma conversa, e eu fui muito carinhoso e cuidadoso para não culpabilizá-lo, mas eu disse: como podemos nos proteger? Vamos reduzir os parceiros? Mas parece que a gravidade da situação não entrou muito na cabeça dele. E eu continuei aceitando me sujeitar àquilo. 

Depois de uma viagem que ele fez pro Rio de Janeiro com a família nas férias, ele me contou no nosso reencontro que tinha ido a um bar de sexo lá e tinha "mamado uns caras" e perguntou se eu não queria usar camisinha com ele, porque poderia ter pegado algo. Uns dois meses depois ele teve hepatite A e um mês depois eu adoeci também. Ele pode ter pegado de outras maneiras, mas o jeito como eu peguei dele foi pela via sexual. Essa hepatite se transmite de forma fecal-oral, então você pega tomando água ou comendo alimentos contaminados ou fazendo sexo oral no ânus.

Pra mim, era mais provável que ele tivesse pegado pela via sexual. Apesar de não ser grave, a hepatite A adoece muito e provoca sintomas horríveis. Tive tanta náusea que passei dias sem me alimentar ou hidratar direito. Perdi quatro quilos em uma semana. Foi um período muito difícil, tanto pelo adoecimento, quanto pela crise que ele desencadeou no relacionamento. Desta vez eu o responsabilizei e ele se sentiu mal, mas reconheceu os excessos e o comportamento de risco. Depois disso, ele entrou pro tantra, foi rever a sua relação com o sexo, e no ano a mais que passamos juntos não tivemos mais adoecimentos assim.

A morte desse rapaz me fez pensar em como ele aceitou um destino, se deixou levar pelo fluxo da doença, pelo correr em direção à morte, sem intervir. E me fez pensar em como, no meu namoro, eu não fiz quase nada para impedir o meu próprio adoecimento causado pelo comportamento do meu parceiro. Tudo em nome da manutenção da relação, para não perdê-la. Foi muito importante perceber este silenciamento agora que a relação chegou ao fim, após correr alguns riscos.

Viver como gay não precisa ser o que esperam de nós: ou mortos, ou lascivos ou silentes. Viver é correr riscos, buscar o que se deseja implica correr algum risco, mas viver para o risco é dançar em direção à morte, é se deixar levar pela correnteza, é aceitar um destino que não precisa ser o nosso. Criar uma maneira sadia de viver, desejar e gozar sendo gay é a revolução que ninguém esperava e é a lição que podemos aprender e perseguir cada um do seu jeitinho.    

24.4.25

perder tudo

Como é bom ter alguém pra nos desmascarar, né? Porque se dependesse de nós, era autoenganação pura. Mesmo que já não tivesse mais nada ali, mais nada pelo que valesse a pena lutar, mais nada pra preservar; ainda tinha uma vontade de continuar com algo, guardar um resto, não perder tudo. A que serviria? Seria pra fazer o quê depois?

Mas ainda bem que tem alguém que nos ajuda a perceber essas artimanhas, essas peças que pregamos em nós mesmos. Quanta angústia ainda seria necessária pra eu olhar pra dentro, pra eu sacar, senão o meu desejo, pelo menos o que eu queria? Quantos sintomas mais eu ia sentir no corpo, e ainda continuar sentindo mesmo depois, até perceber, até tomar e sustentar uma decisão, até dar a isto um nome?

Pôr um fim à repetição. Fazer algo novo. Errar diferente. Talvez fazer isso seja uma das coisas mais difíceis do mundo. Não calar, não sofrer em silêncio. Perceber as tentativas de fazer de algo o que não é. Sabe por que é o mais difícil? Porque não fica nada no lugar. Não é que o buraco seja mais embaixo, ele está também acima, ao lado, está em toda parte. Ele toma conta.

O mais difícil é olhar pra ele e ir atrás de outra coisa. Não de tampa.


21.4.25

honey baby

Há muito tempo li um poema da Hilda Hilst que me fascinou muito. E ele terminava assim:

A palavra é necessária diante do absurdo

E agora após terminar o meu último relacionamento, percebi que este foi o meu maior aprendizado. E percebi os quantos absurdos diante dos quais me calei. E senti no corpo a manifestação deste silêncio, desta palavra tão necessária que encontrou seu caminho de se manifestar.

E percebi também as tantas maneiras que encontrei de expressar as minhas palavras ao longo da vida. E por isto voltei ao blog. Porque este diário foi, durante alguns anos, e anos muito importantes, minha principal maneira de expressar o disforme em mim, o absurdo. Talvez a minha primeira experiência de associação livre.

Hoje eu tenho um espaço formal e organizado para associar livremente, rs, mas logo vi que a vida pede mais: ela pede expressão, produção, criação. Hoje estou aqui me exercitando, mas também reconhecendo que a escrita perdeu esta função pra mim nos últimos dez há treze anos mais ou menos. Ou até antes. E acho que a substituí principalmente por relações e interações muito diversas.

O blog também foi uma relação, uma interação com alguns leitores, rendeu até algumas polêmicas na escola. Hoje ele está fechado. Provavelmente vai demorar muito tempo para alguém ler isto. Mas estou escrevendo por é preciso dizer algo, porque a palavra é necessária.

Eu não sei se vou recuperar a minha relação com a escrita. Não sei se vou criar algo novo e o que será. Mas volto aqui simbolicamente. Releio algumas coisas e me divirto, e contemplo. Era coisa séria, e era coisa muito legal e importante. O que eu fazia era muito legal e importante. Tomara que eu faça mais coisas legais e importantes, que eu siga produzindo e criando. Que eu siga me expressando diante do absurdo e do banal, do bonito, do corriqueiro, da dor, do amor, do luto. 

Como não disse Hilda Hilst, e agora eu digo

A palavra é necessária diante de tudo

23.11.15

fio dental

hoje você não está muito pra conversa, parece. essa banda é meio mole, bem sem graça: como você. tem gente que confunde apatia com elegância, antipatia com sorriso. e aquele existencialismo de promoção, as dúvidas sobre tudo o que te cerca como se o problema estivesse em outro lugar. já ouvi isso algumas vezes. a noite tem seus tipos, os ciclos vêm. os egoístas, os ironicosarcásticos, os monogâmicos possessivos. cada quem com sua neurose típica e esperada; com sua colocação própria; às vezes até o corpo segue um padrão. surpresa nenhuma, meu bem. nessa vida a gente aposta pra acertar e esse jogo eu já conheço. o mercado é previsível.
eu abro a vastidão do meu vazio se você me mostrar o seu primeiro. vamos ver qual é mais profundo.
vou ser sincero, estou aqui pra te julgar. não passo fio dental à toa.

fracto livre mente

era uma sensação maravilhosa: a liberdade. a realidade era muito mais complexa e às vezes a sensação não correspondia a ela; mas poder viver isso também era ser livre.
dessa vez eu não estava triste por estar sozinho. entrei num ônibus em distração, e de repente, quando percebi, estava subindo no teto. fiquei ali em cima, me equilibrando com o meu corpo, sentindo a noite fresca que depois ficou fria. as pessoas olhavam com espanto, provavelmente pensando: loucura. eu as via de cima confundidas com as luzes borradas da cidade. elas eram pessoas ou eram cidade, eu quem era. cidade que eu atravessava ligeiro na velocidade do ônibus, comum e usual; eu atravessava a cidade que me atravessa e que fica em mim todos os dias. pela primeira vez eu desafiei o caos perfeitamente ordenado; a rocha, o barro e a madeira; o sono mal dormido; o silêncio inquieto. acordando sonolento. doce pesadelo urbano.
vi um pouco além; eu em movimento, vendo o mundo mover e sentindo essa coisa aqui dentro, sem forma ou direção, tomar um rumo também. pela primeira vez em muito tempo me senti livre de mim mesmo. e assim, dessa maneira, me entregando de tal modo a mim, passando agressivo pela urbe em vez de passar pelos meus próprios crivos, que, ao final, apenas me paralisam. dessa vez a eterna surpresa não me pegou. transformei a surpresa em liberdade vivida, em potência perene.
o ônibus parou mas eu segui.

11.9.15

quando você me vir na rua, eu não sei serei aquele cara estiloso que passa apressado e arrogante. eu não vou ser o rapaz dos fones de ouvido, muito menos o dos óculos escuros. eu não serei aquele melhor que os outros, serei tão pior quanto qualquer um.
quando você me vir na rua, vai perceber que ando um pouco cansado, ansioso, estressado. vou passar devagar pensando em tantas coisas. perdido.
apesar da serenidade, quando me vir na rua, você vai saber. por dentro: uma loucura.

28.8.15

Receita em crônica: patacones lejanos

Uma das melhores formas de conhecer um lugar é através da comida. Ela carrega a cultura, a história, a tradição, as inovações, as boas ideias, a saúde de um povo. Quando estive na Colômbia, por seis meses, pude provar a comida de lá e me alimentar de acordo com os hábitos do país e de Antioquia, a região onde vivi. Há algumas semelhanças entre a comida brasileira e a colombiana, principalmente a cozinha nordestina, que usa derivados do milho e coentro como tempero. Mas as diferenças são maiores. No café da manhã é obrigatória a arepa, o pão deles. Pão mesmo, quase não há, o que eu acho excelente. A farinha de trigo branca é muito processada e a maioria dos nutrientes são perdidos, restando o puro carboidrato, que é absorvido rapidamente pelo organismo e quase não alimenta. A arepa é feita basicamente de farinha de milho pré-cozida, o grão integral. Ela é como uma tortilha, e diferentes variedades de milho e formas de preparo resultam em diferentes arepas. A melhor arepa, para o meu paladar, é a de milho verde com queijo fresco por cima: arepa de chócolo con quesito. Essa tortilha é a base da alimentação colombiana.

Mas a cultura de lá varia bastante de região pra região. Historicamente, a causa disso foi o isolamento das regiões tanto por causa do relevo, quanto pelas péssimas condições das estradas no período colonial. Isso criou um país de muitos sotaques e maneiras diferentes. A comida também muda entre os lugares. O prato cuja receita vou dar é o patacón, típico da costa caribenha. Não lembro a primeira vez que provei, mas sei que com certeza achei delícia demais. A primeira vez que preparei essa receita foi no Brasil, depois que voltei; lá eu só comia o deles porque, claro, era mais bem feito e saboroso. Mas das algumas vezes que fiz para amigos, todos amaram. Comi bastante quando viajei a San Bernardo del Viento e em Medellín também.

O patacón é uma banana da terra verde duplamente frita e amassada, um tipo de crosta crocante salgada. A banana pode ser cortada em rodelas, o que resulta em discos, ou pode ser frita inteira e vira uma grande folha. Come-se com hogado, um molho simples de tomate, mas também são comuns outros recheios como guacamole, carnes, saladas, queijos, molhos diversos e o que a pessoa quiser pôr por cima. Eu prefiro a versão clássica com o molho de tomate um pouco mais incrementado com ervas e pimenta. Ele leva tomate, alho e cebola; pode ser também com a base da cebolinha, a parte branca que vai até o verde claro, perto da raiz. No Brasil só se usa as folhas da cebolinha, que também podem ser usadas na receita, desde que colocadas ao final do cozimento. O principal desafio dessa receita é encontrar a banana da terra verde. Se você não tiver contato direto com um produtor (quem tem?), é bom saber o dia que o hortifruti chega ao supermercado ou sacolão, assim tem mais chance de encontrá-las verdes. Acredito que em feiras pode ser mais fácil de encontrar. Ela precisa ser verde pra ficar crocante e salgada. A banana da terra madura, deliciosa também, é mole e doce e podemos fazer outras receitas maravilhosas com ela. Se a banana estiver de vez, meio verde meio madura, dá pra fazer se ela estiver mais pra verde do que pra madura.

Abaixo a receita para duas pessoas.



Patacones con hogado

Ingredientes

Patacones

  • 4 bananas da terra verdes descascadas
  • óleo para fritar em imersão
  • sal

Hogado

  • 2 tomates grandes maduros inteiros picados em cubos
  • meia cebola picada em cubinhos ou quantidade equivalente da parte clara da cebolinha
  • 1 dente pequeno de alho
  • sal
  • pimenta
  • orégano e tomilho ou manjericão (opcional)
  • azeite para refogar

Preparo

Patacones

Coloque o óleo para esquentar. Corte as bananas em rodelas com dois dedos de espessura, ou um pouco menos. Quando o óleo estiver bem quente, frite as rodelas por alguns minutos até dourarem. Retire e espere esfriar um pouco. Amasse as rodelas com o fundo de uma caneca, tigela, frigideira ou entre duas tábuas. Você pode colocar dentro de um saco plástico, assim facilita para amassar. Veja nesse vídeo como amassar. Frite os discos obtidos no mesmo óleo quente até ficarem dourados. Deixe escorrer ou coloque no papel absorvente. Tempere com sal.

Hogado

Refogue a cebola por alguns segundos num fio de azeite, acrescente o alho e refogue. Acrescente os tomates, o sal e a pimenta e deixe cozinhar até que os tomates se desmanchem. Caso use o tempero, sugiro óregano e tomilho, uma pitada de cada. Algumas folhas de manjericão também vão bem. Coloque mais para o meio do cozimento, as ervas secas. Se forem frescas, ao final. Mexa para misturar o molho e amassar os tomates. Ele fica com um aspecto rústico, com as casas; e dependendo da quantidade de azeite, com um brilho lindo. Prove e acerte o sal.

Sirva os patacones junto com o molho para acompanhar.

Essa receita é alegra e viva. Ela tem o sabor da costa colombiana. Prepare num dia feliz ou torne o seu dia feliz preparando essa receita. Um som que combina com esse sabor é a banda Systema Solar.

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